Observamos ao longo de nosso trabalho com homens que se mantém envolvidos
homoafetivamente e que são pais que existe uma especificidade na expressão de sua
masculinidade: existe uma separação entre ser homem pai X ser homem que tem
relacionamento com outro homem (gay/homossexual). Sua orientação homoafetiva, não
importa qual a denominação (de preferência nenhuma, gostam de se definir apenas como
homens e pais), parece estar desvinculada de sua relação com seu filho.
É como se não fosse possível reconhecer, viver e expressar sua homoafetividade sendo
um homem que namora outro homem e sendo o pai que ele é. Essa cisão está bastante
relacionada à auto aceitação e ao processo de se assumir numa identidade homoafetiva.
Quanto mais tardia a organização e estruturação da identidade homoafetiva mais o
modelo hegemônico, de valores heterossexistas estão presentes e, portanto, mais
demorado pode ficar o estabelecimento da masculinidade homoafetiva.
É uma revisão, desconstrução e reconstrução de aspectos próprios internos e externos,
que diz respeito ao masculino. Como não existe apenas uma masculinidade e sim
masculinidades, esse processo conduz a um delicado trabalho pessoal, intransferível, de
busca e revisão do que é importante e valioso para si mesmo, como homem e pai; desta
vez não apenas reproduzindo mas se reorganizando e criando o que é a sua própria
masculinidade.
A ideologia que respalda o que é valor para o gênero masculino, que dita as regras para
os homens (como namorar e casar com mulher, se comportar como macho provedor, não
externalizar fraquezas, sentimentos....e assim por diante) torna essas "coisas de homem"
como obrigatórias, fazendo parte da formação e desenvolvimento de aspectos de uma
identidade masculina. Mas então, com todo peso dessa formatação do gênero masculino
ao longo do desenvolvimento de todo homem como será possível ser homem, pai e gay?
É um árduo e longo processo de revisar aspectos do masculino.
Esse processo tem uma dimensão muito ampla visto que a heterossexualidade é o
componente que mais expressa o masculino, sendo cobrado como condição obrigatória
do mundo dos homens. Isso engendra conflitos na esfera da masculinidade e gênero que
estão associados à percepção e a necessária auto aceitação da orientação homoafetiva.
Entretanto é inevitável, para o desenvolvimento emocional, psicológico e pessoal que
esse homem reconheça admita e aceite sua homoafetividade. É uma necessidade interna,
individual de se assumir, apesar dos enfrentamentos necessários (a revelação para os
filhos, familiares e a reação deles).
Ele se assume porque não pode mais negar que essa é sua natureza, que é assim que é sua
sexualidade; não heterossexual. Contou-nos um pai sobre seu sofrimento e afastamento
de seus filhos, que durou cinco anos, na época que se assumiu:
"Fiquei anos em uma vida reclusa afetivamente, lutando pra continuar na formatação
que acreditava ser a melhor para todos, "idiotice"..., mas ate que com muita terapia e
trabalho árduo saí do casulo e venho caminhando nos últimos 2 anos; evolui em uma vida
mais gratificante verdadeira, calma e tranquila. Embora o enfrentamento (devido à revelação
de sua homoafetividade que era mantida em segredo) com os meninos tenha sido tenso estamos
caminhando bem, evoluindo como seres humanos que se amam e se cuidam!!!!"
Hoje esse mesmo pai está orgulhoso de ter construído com seus filhos essa relação
próxima, familiar, verdadeira e respeitosa. Ele nos contou que recentemente passou um
final de semana em sua casa com seu namorado, seu filho mais velho e a namorada dele,
assistindo um vídeo, discutindo e debatendo as coisas da vida. Ele de fato merece o que
construiu.
Um tema que vem sendo muito debatido pelos pais que temos contato neste trabalho, que
diz respeito a esta questão que estamos aqui discutindo, é sobre a expressão natural da
homoafetividade numa rotina de convívio com os filhos.
Mesmo os pais já revelados para os filhos, ou aqueles cujos filhos sabem de sua
orientação, ainda não é natural a expressão do afeto. Alguns deles não pensam muito
nisso, porque os filhos moram muito distantes e se vêm muito ocasionalmente, mas estes
não são maioria. Muitos pais que conhecemos apesar de não morarem com os filhos (são
divorciados, com guarda compartilhada) usufruem de sua companhia semanalmente e têm
muita oportunidade de estar com os filhos em suas casas pernoitando. O convívio com o
namorado ou companheiro do pai, cedo ou tarde, inevitavelmente acontece e a regra entre
eles é se comportarem como amigos. Sendo assim os filhos nunca sabem como - e se -
seus pais estão de fato vivendo sua homoafetividade; para os heterossexuais a sociedade
impõe a regra para os homens expressarem que estão envolvidos afetivamente, mas para
os homossexuais esta deve ser construída por eles.
Como a idade mais propícia para a educação para a diversidade (e subsequente revelação)
é QUANTO MAIS CEDO MELHOR, constata-se que se eles não procedem a essa
necessária educação sobre sua condição homoafetiva, ficará cada vez mais difícil
abordar o assunto, ou ao menos se comportar naturalmente - e homoafetivamente - perto
do filho quando está com um companheiro, ficante, namorado ou até mesmo com seus
amigos também homossexuais.
As atitudes do pai com um namorado perto de seu filho podem ser bem naturais; pena
que muitos pais não sabem, ou não conseguem, se comportar mais naturalmente.
Demonstrar afeto nunca é prejudicial às relações familiares, embora o contrário,
demonstrar distanciamento, raiva, ódio, agressividade é sim bastante negativo.
Contou-nos um pai, que nunca se preocupou muito com o fato dos filhos saberem ou não
que ele tem envolvimento homoafetivo. Eles sempre o acompanharam em viagens,
sempre participaram de atividades junto com seus amigos, namorados, companheiros
(teve envolvimentos de longa duração). Ele tem certeza que seus filhos o aceitam e
respeitam sua intimidade, sua orientação sexual, mesmo não tendo nunca falado sobre
isso com eles. É como se o conhecimento dessa verdade tivesse acontecido naturalmente
sem ser necessário explicitar literalmente. Seu relato exemplifica essa sua forma de se
relacionar com os filhos e de mostrar quem é o seu namorado:
Tive a oportunidade de viajar com meu filho mais novo (17 anos) e seus amigos, para
passarem um feriado prolongado em uma casa de praia. O P (namorado) foi comigo e
sem que tivéssemos trocado uma palavra, ao chegarmos, o T tinha reservado um quarto
para nós dois, pedindo aos amigos que se acomodassem nos demais. Nunca formalizei
uma declaração da minha orientação sexual e também não havia apresentado o P aos
meus filhos ainda. Isso aconteceu naturalmente, pois eles queriam manter a sua
privacidade e não estavam interessados em como nós agiríamos durante a noite a sós no
quarto.
Nem sempre é essa tranquilidade. Com bastante frequência existem profundas
preocupações com a imagem de homem e pai que ele tem de si mesmo e o que aparenta
para os filhos. O estabelecimento da identidade, como um homem se vê, como quer ser e
como internaliza aspectos de masculinidade se dá desde que nasce; outros homens,
principalmente o pai, são importantes modelos para os filhos. Ser homem, se envolver
homoafetivamente e ser pai requer questionamentos, reflexões e revisões continuadas
sobre a integração dessa realidade.
Outro pai nos conta que existem questões que ele agora terá que enfrentar, já que seu
filho agora formado, virá novamente morar com ele. Esse pai que hoje mora com dois
amigos, também gays, se dá conta que a vinda do filho vai trazer a necessidade de
trabalhar questões com relação à sua própria homoafetividade, que ele já considerava
resolvidas. Isso é bom. Vejam em seu próprio relato que hoje ele faz uma constatação que
nem percebia que separava a homoafetividade masculina de seu papel de pai:
Particularmente na minha experiência quanto à minha identidade afetiva, já de longe
comigo mesmo resolvida, foi a primeira vez que me deparei com a questão da separação
da minha masculinidade e do meu papel como pai. Penso que o papel de pai está muito
ligado ainda ao modelo que percebi do meu próprio pai, totalmente diversa dos padrões
atuais. Talvez pelo fato de que meu filho esteja retornando a morar comigo, após 5 anos
morando com a mãe, prazo que foi suficiente pra que eu pudesse dar um desfecho muito
positivo quanto a minha auto aceitação, estou refletindo sobre as questões de
manifestações que são naturais ao ser homoafetivo e as relacionadas ao pai. Esta
junção deverá ser trabalhada e talvez esse seja o momento.
Mas sabemos o quanto trabalhar essas questões implica em uma necessária revisão
daqueles antigos valores e modelos do masculino pautados na ideologia sexista e
heteronormativa, que dita normas principalmente para o homem, cobrando a
heterossexualidade como a única possibilidade. Ser homem, ser pai e ser gay quebra essa
ideologia, quebra o modelo do masculino aprendido e obriga esse homem a refazer seu
modelo conforme sua verdade, sua realidade e não apenas conforme o que foi passado,
internalizado.
Masculinidade e gênero é assunto polêmico sempre presente quando tentamos
compreender o homem que mantém relacionamento homoafetivo e que é pai. Até mesmo
para aqueles que se percebem bem resolvidos e aceitando sua homoafetividade o caminho
que trilham nessa busca nunca termina.
Eles se dão conta de uma necessidade de realizar uma revisão profunda das relações com
o próprio pai, de rever a importância ainda hoje da figura desse homem em suas vidas.
Para alguns o pai foi a antítese do que ele se propôs ser como pai com seu filho. Seu
próprio pai, de modelo mais tradicional, era o provedor financeiro da família, distante
afetivamente, exigente, assustador para alguns, ou sensível e atencioso para poucos. As
vagas lembranças do pai levam a outra constatação: que a mulher, mãe, foi a figura mais
presente, mais forte; foi quem os educou para serem homens também no modelo
tradicional - macho, provedor - embora com aspectos dissonantes do pai que tiveram.
Alguns pais que temos contato neste nosso trabalho percebem que ainda existem questões
pouco esclarecidas que cedo ou tarde interferem na sua forma de ser homem e pai que
estão associadas ao seu próprio pai. Fazem uma associação de que ele seria menos forte,
viril, macho, corajoso sendo um gay, em contraposição aos homens heterossexuais. Isso é
antigo, associado à sua própria relação com seu pai, que desde muito menino o
humilhava, agredia com um "seja homem" repreendendo-o na forma de se vestir, de se
comportar.
Sabemos que nunca foi fácil, para nenhum dos pais que conhecemos, assumir que é um
homem que se sente atraído por outro homem. Sabemos também que ser pai, ter filhos,
constituir família antes de ser uma forma de evitar ou de fugir da homoafetividade foi sim
a grande busca da paternidade e uma constatação de sua masculinidade. Mas agora, já pai
e já assumido em sua homoafetividade parece que seu desafio é a reorganização de sua
masculinidade. Uma redefinição da própria masculinidade não mais pautada nos antigos
modelos heterossexuais, mas que respeita os próprios caminhos que cada um construiu e
que pode sim ser redefinido numa masculinidade homoafetiva.
Vera Lucia Moris
São Paulo, Junho de 2016
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