Pai gay adotivo

A adoção como forma consciente de realizar um antigo desejo de ser pai.

Existem sempre algumas dúvidas e inseguranças acerca da adoção por homossexuais, quer seja por parte de familiares, da sociedade ou até mesmo do próprio interessado nessa forma se tornar pai, no entanto as respostas podem ser bastante simples. Se tornar pai vem sendo hoje em dia uma possibilidade cada vez mais concreta para o homem que se aceita e se assume como homossexual.

É comum um homem sentir, quanto ainda na juventude se percebe com orientação homoafetiva, que deverá abdicar de sua vontade de ser pai, caso assuma essa orientação. Quando ele se dá conta de que sua vontade de criar filhos, de conviver com eles e de cuidar deles não precisa estar condicionada à procriação biológica - inserida num modelo de família tradicional - a adoção passa a ser uma possibilidade de realizar a paternidade. Ele vê que não é necessário se casar, ter uma família tradicional, um casamento heterossexual, tendo que negar a homoafetividade, Afinal ser pai é muito mais complexo do que apenas gerar filhos.

Recentemente respondemos a um questionário de pesquisa acadêmica publicado em nosso blog sob o título Reflexões sobre adoção por homossexuais (veja em links e reportagens) que pode auxiliar os pais e mesmo o público leigo a compreender o que é simples, embora pouco divulgado: a homossexualidade do pai que cuida, educa, cria e convive, não oferece risco ao filho.

Diferentemente do pai gay que assumiu sua homoafetividade depois de ter se tornado pai, após um divórcio muitas vezes conturbado, a maior preocupação do pai gay adotivo não é a sua homoafetividade, visto que ele já se aceitou ou até já se assumiu como gay. Contou-nos um pai, que adotou sua filha quando tinha 3 anos, que a maior dificuldade não foi falar de sua homoafetividade, tampouco ser o pai dessa criança. Seu grande desafio foi auxiliar a filha a superar e entender porque não tinha mãe, ou seja, porque era adotada. Dar-lhe esse apoio, considerar essa situação um desafio pessoal da criança que é adotada, foi até bem pouco tempo - a filha hoje está com 15 anos - a pauta de suas conversas com ela.

No Brasil essa é uma discussão recente que vem sendo realizada no âmbito social, psicológico e jurídico. Não existem normas específicas para homossexuais, portanto o que regulamenta essa prática é uma mesma lei para todos os brasileiros. Existem diversas matérias publicadas na imprensa em geral, que abordam alguns aspectos da relação de pais homossexuais e seus filhos, alguns artigos foram destacados neste site na sessão links e reportagens.

Inúmeras questões sobre a adoção por homossexuais, mais diretamente sobre o pai gay que adota, têm por princípio a suspeita - preconceituosa, sem dúvida - que uma criança adotada por um homem que é gay poderá ter seu desenvolvimento afetado pela homossexualidade do pai. Isso se traduz num viés, apoiado na ideologia hteronormativa, que concebe o cuidado da prole como um atributo naturalizado da mulher. Grande parte das pesquisas realizadas nessa área acaba refletindo essa preocupação (ou viés preconceituoso), que homens não sabem cuidar ou que a homossexualidade do pai é prejudicial ao desenvolvimento da criança. A despeito dos resultados atestarem que não existe uma correlação causal, que não é prejudicial para uma criança ela ser cuidada e criada por um homem homossexual, essa dúvida - ou receio - ainda é um grande mito que cerca o imaginário das pessoas e até mesmo do próprio homossexual que deseja adotar.

As principais dúvidas são: se a criança poderá ser alvo de preconceitos e discriminação; se o pai vai ou não conseguir suprir a necessidades da criança, porque é um homem e não uma mulher; como ele fará para substituir a ausência da mãe se ele é gay; se a criança poderá ser influenciada e também se tornar homossexual; se problemas de desenvolvimento e desajustamento emocional podem acometê-la porque o pai é gay. Muitos pais adotivos que acompanhamos - nos grupo de homens e pais, ou nos atendimentos individuais - que assumiram a responsabilidade pelos cuidados e detém a guarda legalmente de crianças adotadas, não referem preocupações diferentes daquelas que qualquer outro pai não gay ou mesmo não adotivo nos trás. Observamos que eles são igualmente capazes, como qualquer outro adulto (homem ou mulher, gay ou não) que se dispõe a atender as necessidades de cuidados que uma criança requer e que seja sensível à essas necessidades. Desenvolver as competências para esse cuidado não é um atributo nem do sexo que o adulto tem, tampouco da sexualidade desse adulto; ser bom cuidador e atento às necessidades de uma criança depende de muitos fatores da esfera mais afetivo-relacional.

Os homens hoje tem se mostrado bastante propensos a se responsabilizar pelo cuidado de seus filhos; eles têm se revelado pais amorosos e próximos, competentes na colocação de limites necessários, atentos e cuidadosos nas questões de aprendizagem e desenvolvimento.

Alguns pais gays adotivos que entrevistamos trazem situações peculiares à rotina doméstica que não diferem em nada do observado em qualquer outra família. Certamente existem assuntos diretamente associados à família homoafetiva: como lidam com a revelação e enfrentam a homofobia; seus temores em torno do preconceito que a criança pode sofrer na escola ou com amigos caso saibam que o pai é gay; a aceitação ou não da adoção por parte da família de origem e como tratam essa situação. Decisões importantes envolvem o momento da adoção, quem vai adotar, quem será o responsável, o pai legal. Se os dois - o casal homoafetivo - quiserem adotar pode ser mais complicado pois as questões legais no Brasil ainda não facilitam esse tipo de adoção. Existem muitas situações que são típicas de qualquer adoção e existem algumas questões que dizem respeito à conjugalidade homossexual, que ainda é atípica, embora cada vez mais possa ser aceita e vista com maior naturalidade.

Observamos em nossa prática que as situações que podem causar algum desconforto, ou envolver crise, na adoção por casal homossexual diz mais respeito aos conflitos da relação do casal do que necessariamente à educação e criação de uma criança, que não difere em nada da educação e criação de qualquer criança em qualquer família. Seja formada por pais homossexuais ou heterossexuais, seja formada por um só pai ou mãe e a prole.

A história do casal Jonas e Apolo: contou-nos recentemente um dos pais que acompanhamos no grupo de pais, que ele e o companheiro - que convivem legalmente como casal há 5 anos - sempre quiseram adotar. Depois de dois anos de espera, de muita ansiedade e expectativas frustradas, os dois (o casal) se tornaram pais de um lindo bebê (adoção como casal), entretanto uma série de conflitos próprios da relação do casal está se instalando nessa família e podem ficar acirrados devido essa fase do ciclo vital em que se encontram: o casal jovem com filho ainda pequeno. Eles terão que lidar com essa fase, com sua própria crise de casal, com o fato de terem filho ainda pequeno (1 ano e 3 meses), que requer maior cuidado direto; e também com o fato deles formarem um casal homossexual que pode ser um estressor a mais nos conflitos. Se eles conseguirem passar por essa crise em seu relacionamento e priorizarem o cuidado e atenção que o filho ainda bebê demanda pode ser que essa crise promova crescimento e que fortaleça o casal e conseqüentemente a família. Mas se a crise não tiver uma saída em direção à conjugalidade e à união deles pode ser que a criança venha a sofrer um afastamento de um dos pais, o que não é bom para ninguém. Se eles, como dois pais, conseguirem mesmo separados não se afastar do filho, se eles priorizarem nesse momento o cuidado do bebê, pode ser positivo para os três. Essa situação que Jonas e Apolo vivem não difere em nada de muitas situações de divórcio de um casal heterossexual; não é a homoafetividade que é o ponto crítico, mas sim como eles enfrentam e tratam de seu relacionamento como casal e como isso pode ou não repercutir de forma positiva na criação de seu filho, que sempre será dos dois. Alguns pais, que adotaram mais tardiamente, quando já vivendo relações homoafetivas podem ter dificuldades de combinar sua vontade de ser pai com a do parceiro, que pode não estar disposto a abrir mão da vida a dois, de casal. Um deles assume a paternidade legal e pode acabar distanciando o outro que não tem esse papel formal. Essas situações devem ser bem pensadas, avaliadas pelo casal. O que mais se observa, mesmo quando os dois querem ser pai é um dos pais adotar e o outro ficar num papel de co-educador. Essa situação é mais simples e pode até mesmo evitar situações futuras de decisões sobre quem é o pai legal, embora não deixe de criar outras situações domésticas ou até mesmo afetivas a serem administradas.

Não é raro o companheiro do pai (co-educador, ou o co-pai) desenvolver vínculos de afeto e de cuidado paterno com a criança, o que é bastante positivo e geralmente retribuído. Os problemas inerentes à esse papel não bem definido de co-educador que o companheiro do pai ocupa são muito semelhantes às situações que conhecemos e que permeiam as relações da famílias divorciadas e que são atribuídas aos padrastos e madrastas.

A história de Dionísio: Contou-nos um pai que quando adotou seus filhos 12 anos atrás já tinha praticamente desistido da idéia de ser pai. Dionísio adotou - como homem solteiro e não como casal gay ou homossexual - as duas crianças num momento de impulso porque estavam sendo negligenciadas pela mãe e foram colocadas para adoção; foi uma oportunidade que surgiu em sua frente e acabou aceitando, visto que também veio de encontro àquele antigo desejo de se tornar pai. Esse pai refere que sempre quis ser pai mas tinha esquecido ou tinha deixado de lado essa decisão pois não achava certo querer ter filhos biológicos numa relação com uma mulher. Estava vivendo com um companheiro já há muito tempo e por sua vez o companheiro não pensava ser pai. Dionísio decidiu e comunicou ao companheiro, "eu acho que ele nunca quis participar de nada disso", acabaram se separando pois o companheiro não vivia a mesma sintonia de rotina doméstica com os filhos. Por ocasião da adoção do segundo filho (cerca de um ano depois do primeiro) que deu mais trabalho pois foi uma criança sub-nutrida e fraca a relação com o então companheiro foi se desgastando e um pouco depois acabou. Suas palavras foram: "nossa de repente, em uma semana a vida em casa era outra; ter crianças em casa muda tudo! Eu acho até que o meu relacionamento acabou por causa dos meninos; tínhamos uma relação antiga de 10 anos e ele era mais velho do que eu. Eu acho que eu vivia muito a vida dele...". Ficaram ao todo 13 anos juntos e o excompanheiro ainda é próximo e é padrinho do filho mais velho. Hoje ele vive com outro companheiro há cerca de 7 anos, seus filhos estão com 12 e 14 anos e por ocasião de nosso contato de entrevista tivemos chance de observar a relação próxima e afetuosa que esses quatro homens - os filhos, o pai adotivo e o companheiro do pai - mantêm em sua rotina doméstica.

Sabemos o quanto os processos legais de adoção podem ser longos; existem dificuldades outras relativas à idade da criança, à origem e cor, visto que muitas crianças disponíveis para adoção têm mais idade e não são brancas sendo pouco procuradas para serem adotadas pela maioria dos casais. A adoção por homossexuais vem se mostrando uma possibilidade para essas crianças não permanecerem em orfanato.

Embora seja bastante lugar-comum e muito discutida vamos encerrar este texto com a resposta a uma pergunta que sempre nos fazem: Há diferença na criação dos filhos quando o casal é homossexual ou então quando ou o pai ou a mãe é homossexual?

Resposta - As pesquisas que temos desde 1980 revelam que não existe diferença na criação dos filhos, nem resultado negativo e prejudicial para uma criança ser criada por homossexuais. Elas podem ser tão problemáticas, ou desajustadas como os filhos de quaisquer pais. O que importa para a saúde mental, emocional e física de uma criança é que ela seja cuidada. Importa que os cuidadores (quem estiver ocupando o papel de pai ou de mãe) respeitem a criança em desenvolvimento, que provenha um ambiente para que ela possa crescer, aprender, se desenvolver e que receba o carinho e atenção necessários para isso.

Muitas vezes os conflitos entre os pais (o casal que é o pai e mãe da criança), podem ser muito danosos e prejudiciais ao desenvolvimento dessa criança. A harmonia nas decisões a serem tomadas é um dos principais quesitos para prover um ambiente propício ao desenvolvimento.

As pesquisas e nosso olhar de terapeuta e psicóloga revelam que as crianças filhas de pais gays podem sim ser mais adaptadas, preparadas para enfrentar a diversidade, mais flexíveis, visto que aprendem a lidar com situações complexas mais cedo na vida. Isso é um fator de adaptação e ajustamento importante para um desenvolvimento harmonioso. É compreensível que as crianças aprendam a desenvolver essas competências, já que a discriminação que sofrem faz com que as habilidades de enfrentamento se desenvolvam. O que é inexorável nessa nossa afirmação é que essa situação que os pais mais temem - revelar e lidar com a revelação da homoafetividade junto aos seus filhos - é o que lhes confere maior força de adaptação e enfrentamento.

Vera Lucia Moris
São Paulo, Junho de 2016

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