Aliada ou inimiga? Um homem, pai e gay pode ter relações boas e amigáveis com
sua ex-mulher após o divórcio, mas ela pode ser sua algoz de vários anos de
calvário.
"A história de João Pedro e de Sampaio" -
Meu casamento foi muito bom, satisfatório e por um tempo me senti capaz,
competente com minhas conquistas profissionais, como pai e marido, enfim orgulhoso
da vida familiar que levava. Mas depois de alguns anos fui percebendo que o meu
interesse por meninos não havia acabado, que aqueles jogos da juventude não foram
apenas "coisas de garotos". Por mais que eu tentasse não dar importância essa
verdade - de que eu sou gay - ficou clara quando me apaixonei pela primeira vez por
um homem. O medo do sofrimento, do afastamento da família não aplacou a tomada de
decisão. Veio a separação, a necessidade de me aceitar, de enfrentar o mundo e o
preconceito, para fazer valer essa realidade >>.
Essa história, com maior ou menor ênfase em alguns aspectos, se repete na vida de
muitos homens que hoje se envolvem homoafetivamente e que se assumiram depois de
terem se firmado numa vida e numa família constituída com bases heterossexuais. Eles
se apaixonaram pelas mulheres com quem se casaram e tiveram filhos dessa relação.
Separam-se e precisam enfrentar duas crises importantes: o divórcio, com a ruptura da
conjugalidade mais os conflitos próprios desse processo; e a necessidade de se
reconhecer, se aceitar e se assumir como homossexual. Com isso eles precisam lidar
com os preconceitos, a homofobia interna e externa e com tudo que até então havia
ficado num limbo de esquecimento e negação.
O término de qualquer relacionamento é doloroso; quando envolve filhos pode ser uma
situação mais delicada, que requer muita negociação. É sempre esperado, necessário
mesmo, que exista uma continuidade num relacionamento minimamente civilizado entre
os pais para que os filhos não sejam os mais prejudicados. Imaginemos como pode ser
amplificada essa situação se o pai sai de um casamento para viver uma relação
homossexual, ou se é descoberto/flagrado pela mulher e filhos levando vida dupla, e
neste caso com outro homem.
O impacto da auto-aceitação para o homem que se reconhece gay depois de já ter vivido
um casamento com filhos e subsequente divórcio é geralmente acompanhado de muita
angústia e sofrimento pela culpa que carrega, como se ele sentisse que sua
homoafetividade é uma traição aos familiares, pais, amigos, à ex-mulher e filhos.
Resguardando as diferenças que podem ser protetoras ou de risco para essa auto
aceitação - como uma visão de mundo e educação integrada com a diversidade e com o
respeito a outros arranjos de famílias e orientação sexual - o pai gay em geral refere que
essa passagem é particularmente dolorosa. É vivida como se tivesse deixando a exmulher
para sair da família, sair de casa, deixando os filhos, e é com bastante
dificuldade que ele supera essa situação.
É compreensível que a mulher não aceite ou não entenda que seu marido, com quem ela
teve uma vida e que ela sempre acreditou que a amasse, não é heterossexual. Ela pode
ter muita dificuldade e pode também não entender, não aceitar.
Observa-se uma variável comum na vida de alguns homens, pais, que aceitam mais
tardiamente sua homoafetividade: a ex-mulher guarda uma particularidade forte e
determinante de uma vida com muito ou pouco conflito dali pra frente. Para os que
foram capazes de construir durante seu casamento uma relação favorável, que
enfrentaram os conflitos conjugais e tiveram saídas criativas para os problemas de
relacionamento que sempre existem pode ser que a ex-mulher seja amiga e parceira,
mesmo depois do divórcio e nova união do pai, desta vez com um companheiro do
mesmo sexo. Entretanto é comum a ex-mulher fazer uma oposição às vezes violenta à
separação e à aceitação da homoafetividade desse que é o pai de seus filhos.
Caso os dois não encontrem um denominador comum e não priorizem o bem estar dos
filhos, o pai que se mantem em relacionamento homoafetivo e sua ex mulher podem
permanecer numa relação conflituosa e desgastante, com mútuas agressões destrutivas
que perpetuam a forma de relacionamento pós-divórcio. Infelizmente nesses casos os
filhos do casal são as maiores vítimas. Temos testemunhado muitos divórcios que
acabam se arrastando na justiça em processos longos, dolorosos, desgastantes e nem um
pouco justos, para os pais ou para os filhos.
João Pedro (53 anos, filhos de 21 e 23 anos) foi flagrado pela família, num domingo
de Páscoa há mais de quatro anos, trocando mensagens com um rapaz por quem se
apaixonara. Foi o caos para todos. Foi expulso de casa no mesmo dia, viveu mais de
dois anos sozinho, envergonhado, afastado de todos que amava (seus pais, sobrinhos,
irmãos, filhos e amigos). Ele sempre foi admirado por todos, era um exemplo de pai de
família, mas agora era execrado. O isolamento que João Pedro se obrigou foi um
calvário necessário para se eximir de uma culpa que teima sempre em assombrá-lo. Este
último ano devido sua perseverança em se manter sempre pronto a acudir a família e a
receber os filhos (mora em outro estado) lentamente foram se reaproximando. Os filhos
vieram vê-lo, telefonaram, se encontraram em algumas situações sempre carregadas de
muita emoção; até mesmo a ex mulher o procurou para conversarem sobre os filhos.
Parece que o tempo consegue fazer com que as pessoas entendam melhor e até
perdoem. Não sabemos o que a ex mulher de João Pedro sentiu e porque foi tão
passional no momento de julgá-lo, expulsá-lo de casa e até mesmo de expô-lo a todos
familiares e amigos. Não sabemos quais eram a base da relação que construíram, mas
até então ela tinha no marido o apoio financeiro e emocional para tudo. Sabemos que
tudo ficou mais leve para João Pedro quando ela o chamou para conversarem,
mostrando que o aceitava. A ex mulher já está em outro relacionamento e não tem mais
se comportado de forma intransigente.
Hoje quase cinco anos depois ainda é difícil para João Pedro administrar sua
homoafetividade; houve muita mudança, viveu perdas, teve que reconstruir uma rotina
de vida. O grupo de pais e a terapia individual tem sido o apoio necessário para ele
entender, se aceitar, e para suportar essa ruptura com a família que constituiu. Os filhos
ainda não aceitam que ele é um pai que tem envolvimento homoafetivo; nunca tocam
nesse assunto quando se encontram, tampouco conhecem o namorado com quem está se
relacionando. Ele tem ainda muito que administrar, os filhos precisam dele e ele dos
filhos. Quem sabe ele encontre um jeito de lhes mostrar que não se envergonha de amar
um homem, que isso não faz dele um pai menos qualificado, cuidador, amigo e
amoroso.
Sampaio tem 45 anos, seus filhos 21 e 16 anos. Está separado da ex mulher já há cerca
de 8 anos, ela foi a primeira que soube de sua orientação homoafetiva. Morava com o
filho mais novo em outra cidade, mas toda semana vinha almoçar com a filha e com a
ex mulher. Sempre tiveram um ótimo relacionamento enquanto casados e a separação
também foi sem conflitos. Sempre pensou que sua ex mulher podia ser considerada a
melhor amiga que já teve; além de ser uma boa mãe para seus filhos é uma mulher que
admira. Sempre se sentiu compreendido, aceito, apoiado por ela. Durante muito tempo
não conseguia contar sobre sua homoafetividade para seus filhos, não sabia muito como
fazer isso. A ex mulher embora o aceitasse, sempre achou que essa revelação era
delicada. Sampaio conseguiu falar de si para alguns familiares próximos e isso o
estimulou a conversar com os filhos; finalmente neste ultimo ano teve a conversa tão
temida com eles. Qual não foi sua surpresa ao ser tão compreendido, aceito. Nada
mudou, nada aconteceu, apenas agora os que mais ama já sabem. Não há mais segredos.
O que observamos é que não existiu por parte da ex-mulher de Sampaio nenhuma
pressão negativa, empecilho ou conflito para que o momento dele, de se aceitar e então
conversar com os filhos acontecesse. Isso já se constitui por si só um desafio grande: se
aceitar, se assumir nessa orientação homoafetiva e então revelar para quem considerar
importante. Agora Sampaio, que está muito mais leve, se sente livre para se envolver
com alguém que possa ser um bom companheiro para todas as horas. É o que está
acontecendo.
A ex mulher pode ser assim uma amiga e aliada, como a de Sampaio, ou pode ser sua
algoz de um longo tempo de calvário quando ele decide assumir sua homoafetividade.
Como amiga ela pode ajudar na revelação para os filhos - que nunca é desejável que
seja feita concomitante à informação sobre o divórcio - e pode também facilitar a
manutenção do contato com a família. Mas como inimiga ela pode oferecer muita
resistência dificultando o processo dele se assumir, se aceitar; pode tentar afastar os
filhos de seu convívio, configurando-se a Alienação Parental; e até mesmo pode
ameaçá-lo contando para todos, como na história de João Pedro, quando fica sabendo
que ele está envolvido com um homem, ou que vai se separar dela.
O que torna a ex-mulher mais próxima e facilitadora desse processo todo é a relação que
foi construída antes e durante o casamento. Se o casal foi capaz de construir um
relacionamento equilibrado e saudável, se a relação teve uma base de companheirismo
respeito mutuo isso pode permanecer após o divórcio. Pode ser que mesmo depois da
separação a mulher continue a ter atitudes compreensivas com aquele que é pai de seu
filho, embora ele agora esteja saindo do casamento porque é homossexual. É difícil para
uma mulher entender, aceitar que o homem que ela conhece e ama não a queira mais.
Isso pode parecer uma grande traição, como se ele a tivesse enganado durante todo
tempo que estiveram juntos. Aceitar que talvez nem mesmo ele soubesse direito de seus
desejos e de sua homoafetividade é algo difícil para muitos entenderem. É difícil acima
de tudo para ele mesmo, o marido, pai e gay, que levou muito tempo para perceber,
entender, se aceitar.
A mulher pode se desesperar e tentar convencê-lo de que isso é coisa da idade, ou que
isso passa, ou então tentar levá-lo se benzer ou se tratar. Ela pode também propor um
arranjo diferente: "somos muito amigos, temos uma família maravilhosa, você pode ter
seus casos, contanto que seja discreto, que ninguém fique sabendo, nem eu". Entretanto
sabemos que para muitos é inevitável uma tomada de decisão e não existe uma forma
tranquila de manter um segredo desse tipo. Certamente será difícil ela aceitar que o
marido tenha uma vida dupla. Manter-se em vida dupla, não favorece o marido, pai e
gay que está tentando se aceitar e viver sua homoafetividade; tampouco é vantajoso para
essa mulher, que poderia buscar outra relação mais satisfatória. É muito provável que os
dois ficassem infelizes e mais cedo ou mais tarde emergiria novamente a crise da
insatisfação, os conflitos.
A tomada de decisão de sair do casamento é sempre difícil, todos sabemos, mas o medo
não pode paralisar atitudes que precisam acontecer. Não há como se enganar, tentando
não ver o que não se consegue mais evitar. Viver a própria verdade, sem se envergonhar
sem segredos ou mentiras para si mesmo é mais que um direito, é uma necessidade. A
homossexualidade não é uma escolha, mas é um fato; não dá para tentar não ser, nem dá
para esconder. Temos observado que esconder ou tentar se enganar pode adoecer e levar
a um estresse maior, como vimos na história de João Pedro, repercutindo em
complicações posteriores mais difíceis de serem enfrentadas, como a reação negativa
dos filhos e da ex-mulher.
Palavras-chave: homoafetividade, divórcio, paternidade homoafetiva
Vera Lucia Moris
São Paulo, Junho de 2016
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