O mundo não concebe que um homem pode ser heterossexual ou homossexual. Os homens conquistam com muito esforço o universo masculino e se afastam ou rejeitam aquilo que os aproxima do universo feminino e dos homossexuais. Eles precisam comprovar continuamente que não são fracos, que não se submetem, que são, corajosos, poderosos e ativos. Está implícito na ideologia dos sistemas pessoais e sociais em que estamos inseridos que ser homem é ser heterossexual, é ser másculo, é ter o poder dominante, hegemônico. Esse estereótipo tem servido de padrão de masculinidade, do que deve ser um homem e do que ele não deve ser. Segundo essa lógica os homossexuais seriam menos homens, pouco másculos, inferiores?
Porque não sou heterossexual?
O maior desafio para um menino que está 'virando homem' é ter que comprovar sua virilidade, sua masculinidade; todos sabemos como as regras masculinas são severas e apenas heterossexuais. Ser homem é o oposto de ser mulher e também o contrário de ser homossexual, gay, viado, bicha, ou muitas outras denominações desqualificadas, pejorativas que denotam o preconceito e estigma que cerca a vida de quem não é heterossexual.
Mas o que acontece com um menino que é homossexual? Ele já sabia disso desde pequeno? Ele se acovarda e engana a si mesmo e aos outros se casando, sendo pai?
Um menino cresce dentro de regras heterossexuais, ele pode não saber quem é ainda, mas já sabe que ser homossexual não é bom, ou é feio, errado ou pecado; o interesse pelo 'outro sexo' marca para todos o despertar da sexualidade. É muito raro alguém saber que desde criança é um gay, mesmo porque "saber algo sobre nossa sexualidade" só acontece depois das dúvidas e incertezas que a adolescência nos impõe. Assim dependendo do maior ou menor rigor na educação, ambiente, nos próprios valores, crenças e oportunidades, esse menino poderá ter maior ou menor dificuldade de se ver como homossexual e se aceitar ao longo da adolescência e juventude.
A grande maioria dos pais que são gays vivenciou um casamento heterossexual com a mulher por quem se apaixonou na juventude e com quem teve seus filhos biológicos. Um pequeno número é pai via adoção, mas ele em geral também trás em sua história de vida relacionamentos com mulheres no início da juventude, já que era o esperado de um menino para ele ser homem.
Quando um homem se percebe atraído e homoafetivamente interessado por outro homem, ele passa por importantes decisões e transformações internas. Ele precisa refazer a imagem que tem de si mesmo como homem e pai, que até então estavam delimitadas e definidas por regras heterossexuais apenas. Ele deve enfrentar o processo de se aceitar, se assumir e decidir se revela ou não - e para quem - sua homoafetividade.
A homossexualidade emerge como possibilidade consciente de orientação sexual após a adolescência - entre adolescência e adulto jovem, depois de viver aquelas inseguranças sobre sua própria sexualidade - e isso acontece na juventude. Em muitas pessoas até mesmo mais tardiamente, na idade adulta. A família, esposa, filhos, familiares, amigos, a sociedade enfim não aceita, não entende que a homossexualidade não é uma ofensa à eles, ou que sua expressão mais tardia não é uma simples covardia de alguém que demorou muito para se aceitar um gay. Ou ainda, que é comum ouvirmos, a homossexualidade não é uma expressão degenerada e doentia da sexualidade depravada de um homem que desistiu de ser um bom pai e bom marido.
Nosso trabalho com os pais gays tem se mostrado uma importante ferramenta que lhes dá suporte para que se aceitem e superem esses conflitos, como podemos perceber no relato a seguir.
André (42 anos, filha 17 anos; filho 11 anos) está há mais de quatro anos afastado dos filhos que moram com a ex-mulher em outra cidade. Seu relato nos revela que existe sim um grande investimento pessoal para se assumir um homem pai e gay.
...A energia das nossas atitudes e intenções é a que nos movimenta vetorialmente em direção daquilo que desejamos e/ou merecemos. A despeito de milhões de processos, argumentos, provas falsas que demoraram para serem desmentidas, audiências, o que vai valer no final é o sentimento que moveu e move cada um dos envolvidos (incluo as crianças)... Fui acusado de espancar meus filhos, de trancá-los sem comida e subliminarmente até mesmo de os expor sexualmente...isso foi há 4 anos e após perícias psicológicas e sociais, com horas e horas de terapia judicial, com testes para todo tipo de psicopata, além de visita de assistente social em minha casa, abrindo geladeira e armários, concluíram que eu era um grande pai...
Percebemos através desse depoimento que existe uma recompensa, que é viver com a certeza de quem você é com a sua própria verdade; ser um gay não inviabiliza ser de fato um grande pai. Entendemos que há que se ter muita coragem para enfrentar o sofrimento de processos destrutivos que duram anos sem sucumbir; hoje André vive com um companheiro, trabalha muito e está assumindo uma profissão nova e gratificante, paralela à que até hoje exerce. Apesar da mágoa de não ter os filhos perto de si, consegue se ver como um vencedor; sente orgulho por ter tido coragem de se assumir, de ser quem é, mas também espera que o tempo traga de volta a verdade e a justiça que os filhos hão de conhecer.
Nem sempre existem conflitos graves por parte da família - esposa e filhos - quando um homem e pai assume sua homoafetividade. Mas geralmente é um processo complexo principalmente se esse "se assumir" foi antecedido por muitos anos de silêncio, de medos e segredos. É sempre difícil um homem e pai se perceber, se aceitar e se assumir como gay, viver abertamente um relacionamento homoafetivo; ele tem receio de que sua homoafetividade traga problemas para os filhos, já que sem dúvida vivemos numa sociedade intolerante às diferenças e à diversidade.
Dependendo da cultura, crenças, valores morais, familiares e religiosos esse processo todo pode ser menos sofrido ou mais facilitado. Algumas religiões, bem sabemos, pregam que homossexualidade é pecado, que é doença; para algumas famílias o apego aos valores tradicionalistas, sexistas e heterossexistas de família também afastam, ou dificultam aceitar o que é diferente, outras formas de família e a paternidade não heterossexual. Enfim, depende muito de como as relações culturais, sociais, profissionais, familiares e pessoais estão organizadas para um homem pai e gay se aceitar, se assumir e viver plenamente sua própria verdade.
O que observamos em absolutamente todas as histórias de vida que chegam a nós é que é sempre um grande alívio quando a verdade sobre a própria homoafetividade pode ser tratada de forma natural, assumida pelo homem que é pai e gay; ou seja, quando ele mesmo se aceita. Esse é o começo do processo de se assumir para então decidir se deve ou não revelar a homoafetividade para outros que merecem saber sobre essa particularidade, como alguns amigos, familiares, a mãe dos filhos e os filhos. Veja oportunamente na sessão revelação da homoafetividade algumas dicas de como isso pode ser feito.
Vera Lucia Moris
São Paulo, Junho de 2016
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